Estou aqui para gritar o rancor e o desespero das dores que sofremos. Nas ânsias de um alguém que, ao olhar no espelho encontra-se como uma velha doentia de face angustiada por membros de um orbe superior. Membros tão poderosos que, não sei ao certo, invadiram as dimensões infinitas da arquitetura inconsciente.
Tudo ia calmo naquela noite. A jovem criança de seis, não, sete anos, brincava frente à lareira de sua enorme casa. Sua mãe, de muitos anos em suas costas, estava próxima, parada frente ao relógio, escutando a chuva que tão forte caía. Lembro-me bem de seu xale sobre as costas, detalhado à sua mão. Mãe e criança em casa, buscando o nada do ser que tão humildemente se sentia nos ventos que sopravam lá fora. Noite triste e monótona aquela, como tantas outras.
A velha, pois, já cansada na espera de seu marido, conduz a criança ao quarto, frente ao seu. Ela sorri, enquanto a menina cuidava tão carinhosamente de seu pequeno urso. Urso este que seu pai havia lhe presenteado antes de sair de casa para trabalhar. Sim, ele era ferreiro, o melhor da cidade.
Entram no quarto, e ela feliz vai dentre suas roupas procurar o presente que ele havia lhe dado há muito tempo. Queria mostrar a ele, o zelo que tinha para com aquele objeto. Sempre sorridente, aquela menina acha o que tanto procura, era uma lâmina, linda e translúcida... Ela, pois, sem mais perguntas, num rito de alegria, inicia a partida, que seu amigo tanto pedia. Ele não se encontrava mais ali. Para onde foi? Não sei.
A criança sorrindo, começa a cortar-se, estava sim feliz, via em seus olhos cada corte no corpo, motivo de mais alegria. O sangue escorria em sua roupa. A sensação extasiante que ela sentia ao lançar em seu corpo aquele delicado presente era da mais pura inocência.
Sonolenta e Sozinha naquele quarto lembrou-se de seu urso e, num ato de desespero, cai em si. Agora, não mais calma, arrepende-se do feito. Porém era tarde demais. Estava morta. E foi assim, o silêncio corroeu por dias naquela cidade. Seus pais? Caíram em profunda tristeza, partindo para a nova morada de sua tão amada filha. O xale? Está sob os ombros da menina agora. E o nosso amiguinho? Nunca existiu.